Inclusão, Educação Invenção do Social - JÚLIO FLÁVIO DE FIGUEIREDO FERNANDES (FAE-UEMG)

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A educação como processo implica a inclusão dos educandos no mundo simbólico de seu grupo social, seja por ação de outrem, por ação dos próprios sujeitos ou ambos. Nesse sentido, a educação “não é uma propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade” (Jaeger, 2001, p. 4) e seu efeito, seu resultado é a inserção (a inclusão) nessa comunidade. Esse efeito não ocorre naturalmente; obtê-lo implica enfrentar, no curso da atividade educativa, a luta entre a tendência nomotética (a apresentação a todos de uma regra ou de um modo de ser) e a liberdade de se autodeterminar, de autoinserir-se ou se excluir daquilo que está disponível aos sujeitos.



         Além disso, o binômio inclusão exclusão se apresenta como contingência social e política. As relações abaixo repousam os critérios de exclusão-inclusão decorrentes do processo histórico e eles somente se tornam visíveis pela própria denúncia dos excluídos em sua vontade de resgatar alguma garantia social de oportunidades de inclusão. Cabe citar:
·         Essa exclusão é construída historicamente e tem como efeito produzir um modo futuro de exclusão, sedimentado e estagnado nas relações sociais;
·         Pauta-se em critérios de inclusão-exclusão que consideramos injustos, preconceituosos, nocivos aos excluídos;
·         Refere-se às relações sociais mais amplas e coloca em choque grupos sociais constituídos.

O movimento pela educação inclusiva no Brasil é alimentado pelo ímpeto de denunciar o sentido conservador da educação em geral. Entretanto, as denúncias do conservadorismo da educação nacional, de seu vínculo ao projeto capitalista mundial, que encontramos nas experiências brasileiras, ainda precisam ser mostradas, analisadas e mais bem debatidas em relação ao seu ímpeto político.
A potencialidade política da educação inclusiva no Brasil advém de sua relação com um questionamento amplo, o questionamento da posição da escola diante da exclusão social, cujos matizes são vários: as questões étnicoraciais, as questões religiosas, as questões de nacionalidade e de diferenças socioeconômicas dos modos de vida, a pobreza. Contudo, há ainda o questionamento da alienação cultural e social que a educação produz quanto mais se alinha à lógica global dos mercados.

Em relação à inclusão, o perigo da história única pode ser denunciado com algum esforço por revisitar as histórias sobre a constituição do movimento inclusivo. Ao recolhermos alguns elementos da gênese norte-americana da questão da inclusão, veremos que as discussões brasileiras oscilam entre: apoiar o ímpeto dos norte-americanos de fazer desse movimento uma afirmação da democracia à la american way of life, em sua versão oficial, legal e acrítica em relação à sua sustentação, que é, em última instância, baseada na livre iniciativa do capital, não na livre iniciativa das pessoas; ou deixar de lado a questão política essencial ao movimento inclusivo, atendo-se apenas aos seus aspectos técnicos de decidir os modos de aproximação dos diferentes aos alunos comuns na escola. Essa análise política se aproxima do fazer pedagógico na medida em que salienta teoricamente uma posição presente em experiências brasileiras. O modo como algumas crianças com necessidades educativas especiais têm sido incluídas em escolas cujo interesse é, já desde seu início, fomentar as relações de cooperação indica que é possível contar uma outra história da inclusão, talvez distinta da experiência norte-americana de construção da cidadania.

O movimento inclusivo no Brasil se insere no bojo da reflexão sobre a escola capitalista mundial em duas formas: a educação dita geral ou dirigida a “normais” e a educação especial ou dirigida àqueles que apresentam incapacidades, dificuldades para agir, pensar e produzir “como os normais”. Vários autores situam o surgimento do discurso inclusionista nas decisões de reformas legislativas que permitiriam a aproximação entre a educação especial e a educação em geral.

A grande influência norte-americana sobre o discurso da inclusão
está vinculada ao fato de, naquele país, esse assunto ter se tornado um item oficial já na década de 1960. Em 1961, promoveu-se o Painel Presidencial sobre Retardo Mental (Committee on Mental Retardation). O resultado desse trabalho é o relatório Combate à Deficiência Mental, que enaltecia o desejo dos então chamados “retardados” de fazer parte da vida cotidiana nos Estados Unidos.
Alguns anos depois, em 1966, formalizou-se o Comitê Presidencial de Retardo Mental (President’s Committee on Mental Retardation - PCMR). Disso veio o grande impulso ao desenvolvimento de centros de tratamento e de escolas especiais que se intitulavam escolas para retardados mentais. Paralelamente a isso, surgiu a tendência a identificar o retardo mental como fenômeno a ser “combatido” em áreas de “risco social”.

A tendência decisiva dos sucessivos relatórios é de afirmar a possibilidade de uma progressiva inserção social exatamente a partir do modelo assistencialista e na concepção de que a exclusão social (a condição das “zonas desfavorecidas”) é apenas uma questão de melhor ajuste da harmonia social. Assim, a perspectiva da década que se inicia reúne educação e saúde em torno da deficiência como problema que se origina nas condições naturais do organismo humano: o desenvolvimento retardado resulta na condição orgânica do indivíduo que, por sua vez, o leva à exclusão.

Além disso, chegando-se ao final da década de 1970, encontra-se uma ampla separação entre a educação regular, voltada para os alunos a respeito dos quais não havia queixas e nem diagnósticos de retardo mental (ou outros problemas), e aqueles que precisavam ser educados nas escolas especiais. Entendeu-se, a partir dos projetos governamentais de assistência e das parcerias destes com instituições civis, que para uma melhor evolução dos alunos diferentes (com diagnóstico) se deveria mantê-los em espaços isolados dos demais.

O mundo cultural e educacional de seu grupo social e a posição na divisão do trabalho dos seus pares parece não ser levado em conta como fonte do binômio exclusão-inclusão, interpretado por uma perspectiva individual e naturalizante. A inserção na escola pode ocorrer com a expectativa de que o grau prévio de incapacidade irá determinar os graus possíveis de “socialização” desses sujeitos, sendo a socialização entendida aqui como um mero exercício natural, uma inserção de indivíduos no “ambiente”.

No percurso norte-americano de discussão das relações entre escola comum e escola especial, surgem estudos relacionados aos casos mais graves de dificuldade, que se colocam contra a ideia de uma educação parcialmente inclusiva. Doris Carey e Paul Sale mostram que a literatura ligada à Iniciativa da Educação Regular apresenta raros estudos nos quais seja possível identificar “o estatuto das interações sociais ou dos fatores sociais que impedem ou facilitam a educação das crianças com deficiência junto a seus pares” (Carey; Sale, 1995). No mesmo esforço, constatou-se que os alunos com deficiências leves se beneficiavam mais com a inserção nas salas de aula de ensino geral do que aqueles com dificuldades mais graves (Madden; Slavin, 1983 apud Carey; Sale, 1995). A partir disso, a perspectiva da aproximação entre os normais e os diferentes, ainda que não se afaste totalmente do critério organicista de diagnóstico, aprofunda ainda mais a tendência de salientar a inserção dos diferentes na escola como afirmação da cidadania.

O caso do sistema educacional inglês tem uma situação mista no que diz respeito às relações entre a educação especial e a educação regular. Como diz Poizat, nesse país, como também é o caso da França, encontramos “uma longa história de diferentes dispositivos que foram se somando uns aos outros e se ‘sedimentaram’ com o tempo (como camadas geológicas)” (Poizat, 2006). Isso significa a justaposição de dispositivos de educação especial e a busca da integração das pessoas com necessidades especiais ao curso da escola regular. Ainda nessa direção, a legislação espanhola, de 1985, normatiza a integração de pessoas da educação especial ao âmbito da educação em geral, prevendo o acesso à formação profissional, à educação de adultos e ao ensino universitário. Entretanto, os responsáveis pela educação dizem com frequência que a inclusão educacional está nas escolas, mas se confunde a integração com a inclusão.

Assim, pode-se dizer que a hegemonia norte-americana sobre as definições de inclusão é sentida no âmbito de vários países, principalmente pela ideia de que resolver a exclusão dos alunos com necessidades especiais da escola comum é também afirmar a inclusão das pessoas na cidadania. Desse “núcleo duro”7 de debates expandemse para os demais países, como o Brasil, a Argentina, o México, as questões que se tornaram pauta das principais discussões. Todos eles são signatários da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, constituída em Jomtien, na Tailândia, em 1990, e da Declaração de Salamanca, na Espanha, em 1994.

A lógica da racionalização capitalista faz empreender grande energia na criação de tipologias, e a educação não se isenta de construir um modelo de aluno-tipo, contra o qual se choca o diferente trazido pela inclusão.
Os impasses entre “eficiência-deficiência, rapidez-lentidão, negociação-imposição ou simplesmente inclusão ou seleção” (Barbosa, 2001) não são apenas questões relacionadas à especialização ou não das escolas ou das pessoas que devem lidar com as crianças a serem incluídas. Essas contradições são expressão de posições políticas que definem, por exemplo, aquilo que buscamos como um aluno-tipo, em comparação ao qual os demais são diferentes. Além disso, o rótulo de incapaz ou de menos capaz tem grande chance de ser legitimado na escola na comparação das habilidades e competências desses alunos com o aluno-tipo, essencialmente um sujeito suposto produtivo.

Por trás dos entraves e dos obstáculos técnicos discutidos desde as primeiras elaborações da noção de inclusão na escola, sobrevive seu caráter político. Nesse sentido, uma teoria da inclusão deve situar politicamente as práticas inclusivas, e isso implica considerar o momento do avanço do capital e das formas sociais engendradas pelo capitalismo, inclusive para a educação em geral e para a escola em particular.

A educação inclusiva, assim, se configura com o potencial de ajudar a refletir a respeito desses ideais ditos de uma educação “para todos”, quando na verdade a própria relação da escola com as demais instâncias sociais é pautada na invenção do seletivo sujeito suposto produtivo. O efeito desse aluno-tipo, forjado para atender às exigências do avanço do capital (desenvolver ao máximo os subdesenvolvidos ou os em desenvolvimento), será sempre o de uma educação “para os vários”, os bem sucedidos, e nunca “para todos”. E a escola resultante disso, ao invés de fundar relações de cooperação, pode se tornar inteiramente seletiva, uma peneira social.


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